Standing with Ukraine I
RESGATE
Elas, as que ficam na casa vazia
As que
percorrem agora a terra devastada
Elas, as
mesmas de outrora
As que
geraram filhos para o futuro
E lhes
ensinaram o valor da nobreza de alma
O preço duro
da liberdade
A lonjura do
caminho da paz
O invencível
amor pela terra comum
São agora
escravas e moeda de troca
O troféu do
bárbaro abutre sanguinário.
E elas, as que reinaram e decidiram
As que
possuíam sem serem possuídas
Recusam
ajoelhar-se perante o tirano vagamente emplumado
De cada vez
que são derrubadas sobre o pó dos escombros.
Perderam a
sabedoria poderosa dos livres
Já não sabem
decidir
Já não podem
escolher
Todas as
decisões já foram tomadas
Sentenças de
morte, degredo ou infâmia
Ainda antes
de a primeira mentira
Ter rasgado
a fronteira da terra soberana
Antes de a
primeira lança ter trespassado
O mais jovem
dos amantes da terra mãe.
E elas, as que só se vêem a si mesmas
No espelho
de Narciso que em breve
Há-de
dissolver-se no imenso mar
Engalanadas
de vaidade e triste fama
Também elas foram
a fera e a lança
O peso e a
medida da perfídia
Também elas
têm o belo rosto manchado
Pelo sangue
dos justos e dos inocentes.
Todas elas conheceram o falso pretexto
Que ali
trouxe o invasor e as suas hordas insaciáveis
Um
sequestro, uma língua, um epíteto ignominioso,
Uma invenção
tresloucada, o aguilhão da inveja e da cobiça
Um rosário
maldito de mentiras e embustes
O mundo
desconcertado voltado às avessas.
Tudo são,
para o bárbaro, pretextos e motivos
Sobretudo
ela, a devota de Narciso
A pérola
fatal que envenena a ostra.
Aquela que
fala outra língua de nada se arrepende
Ri com riso
escarninho da tragédia e da morte alheia
E parte para
o novo palácio e o novo dossel.
«Adeus, Troianas!» diz com desdém
«Lamento a
vossa sorte
A vossa
coragem e as vossas virtudes.
De que vos
servem as virtudes e as puras almas?
Não salvaram
os vossos filhos nem a vossa terra
Que agora é
minha e do meu senhor!»
E a mãe a quem arrancam dos braços a frágil criança
Para a
despenhar do mais alto rochedo
Grita aos
deuses, ao bárbaro, à devota de Narciso:
«Que sabes
tu de coragem e virtudes
Que sabes tu
sobre os segredos do tempo
Sobre a
força inexaurível dos guerreiros da luz
Sobre a
redenção dos justos?
Nada te
pertence que não seja teu por direito
Estás de
passagem para o Hades
Hoje,
amanhã, um qualquer dia
Os cães do
inferno aguardam-te
Não para te
guardarem
Mas para te
devorarem.
És o mal e
não o conheces.
Não sabes
que o mal se devora a si mesmo?
Tu, mulher
vã, e tu, homem cobiçoso
Não
conheceis a força que mantém no lugar
O eixo do
Universo.
A vossa
soberba e a vossa ignorância matar-vos-ão
Muito mais
cedo do que pensais.
Não tereis
sequer tempo
De ver
coroados com a nova liberdade
Os filhos
futuros das mulheres de Tróia.
Ilion não
perecerá jamais
Existíamos
muito antes do vosso primeiro respirar
Existiremos
muito depois da vossa queda!»
São Ludovino, 8/5/2022
(Resgate, poema inspirado n’As Troianas de Eurípides, adaptadas por Jean-Paul Sartre)
As Troianas, photography by São Ludovino.
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