Standing With Israel - I

ANTES DE OUTRORA, DEPOIS DE AMANHÃ

Falam-me de ti os escravos da Babilónia

Os que foram escravos deveras
E pela força do chicote construíram
O largo império dos seus efémeros senhores.
 
Dizem-me alguns com a pele gretada
E os ossos rompendo a ferida que não sara
Que só a beleza te salvou de seres escrava como eles.
Amargurados dizem que foste escrava de outra espécie
A que se esquece de quem é
E jamais se liberta das correntes de ouro.
Dizem-me que tinhas um colar de granadas vermelhas
Rebrilhando em volta da cintura
E dançavas nos palácios dos teus senhores.
Dizem-me que os deuses te tinham concedido
A beleza estonteante das montanhas solitárias
Que se lançam em abismos
Como pássaros sedentos sobre oceanos de orvalho.
Dizem-me que enfeitiçavas o vento
E as serpentes
Que os caçadores acabavam sempre por matar.
Dizem-me que construíste um veleiro de papel
Em segredo, no degredo dos mármores polidos
Que partiste para a Polinésia, tão distante da terra inicial
E que nunca mais houve música nem poesia no deserto.
O colibri roubado às florestas virgens calou-se
E o rouxinol das terras frescas desfez-se na noite
Como uma lágrima de foguete.
Dizem-no, repetem-no
Mas não estão certos de que tenha sido assim.
Certo é que viveram e morreram no cativeiro.
 
Eles falam-me de ti, os teus irmãos de raiz
Uns como guia e bálsamo regenerador
Outros como lenda degenerada
Como traidora que envergonha os antepassados
Alguns como raposa matreira
Tantos te trocam o nome e a origem
Alguns negam que tenhas sido um deles
Mas todos falam de ti
Do que foste e do que nunca foste.
Sem saberem, todos te amam.
 
Eles falam-me de ti
E eu lembro-me
Da escrava, da lenda, da traidora, da fugitiva
Da apátrida universal
Da centelha libertada.
 
Também lá estive, na lenda e na crueza da vida
Nas fileiras de escravos acorrentados
Que cantavam, cantavam sempre
A amada Sião enquanto rumavam a Babel
Pés ensanguentados, corações rasgados.
Também lá estive, nas margens dos rios
Onde só os impuros podem banhar-se.
Também lá perdi a juventude e o ânimo
Mas nunca a alma nem a memória.
Eles falam-me de ti e eu estou lá, de novo
Revivo a história do mundo
A história de todos os nossos irmãos
Na história de ti.
 
No princípio havia uma esperança viva
Bastava que os guardas voltassem os rostos por uns segundos
E éramos livres para sempre por breves instantes
Houve vezes em que dançámos juntas na areia
De mãos enlaçadas com o crepúsculo
Com os olhos roçando os tons carmim e violeta das nuvens
E os pés palmilhando a infinitude da lonjura
Tudo nos levava para longe, para a casa amada.
Estávamos em perfeita sintonia
Existíamos ainda mais quando não existíamos
O rio proibido fluía e nós éramos um reflexo de azul e prata
Que às vezes recobria de oceano o coração do deserto.
O deserto, sempre o deserto como horizonte
E limite das nossas existências
E nós dançávamos e desaparecíamos
Por entre as nuvens de areia orvalhada  
Até que o olhar dos guardas se voltasse de novo para nós…
 
Dizem-me que não paravas de falar
De um bom pressentimento
Que te vinha de dentro, de longe, do alto
Que te inquietava
E te deixava calada horas, dias a fio.
Dizem-me que nesses dias os teus olhos cresciam
Como luas descendo lentamente sobre lagos de Outono
E fitavas indistintamente um quadrante do horizonte.
 
Também me lembro disso
Essas horas, esses dias
Aquelas nuvens que pairavam imóveis
Contra a vontade do vento
Só para que os teus olhos não precisassem de se mover
E os teus pensamentos não fossem interrompidos.
Quando regressavas de ti mesma já não falavas
Nem respondias aos curiosos.
 
Ainda ontem eras muito jovem
Foste sempre mais jovem do que eu
Eu, que tive sempre uma idade incerta
E inesperada em todas as curvas da caminhada.
O tempo passa por nós de modo diferente
Mesmo quando estamos no mesmo lugar
E é o mesmo o gume da dor.
Adivinhaste quase tudo o que passou
E viria adiante
Adivinhaste o que eu fora e seria
Narraste em canções e silêncios
O passado e o futuro de todos os nossos irmãos.
Esperavas e recebias o que vinha.
De cada vez esperavas cada parte e o todo
E pintavas o poente
Com os cabelos da criança milenar
Com os olhos dos jovens sedentos
Com o corpo de seres transcendentes
Almas divinas e passos de sobreviventes.
Olhavas sempre para muito longe
Mas não conseguias decifrar as miragens gigantescas
Que às vezes cobriam toda a metade oriental das areias.
Quando se desvaneciam deixavam-te apenas
O êxtase e a amnésia
Gravados num novo brilho do olhar.
E eu lembro-me delas também
E de ti a fitá-las.
Faziam as caravanas de seda e flores de sombra
Desviar-se da rota.
 
Milhares de anos passaram por nós
Por todos nós
Somos outros e os mesmos
Outro e outro exílio, a mesma demanda.
Outros senhores e outros deuses efémeros vieram
Outros e outros com outras línguas e outras fomes
Reis, imperadores, czares, faraós, sultões, califas e rajás
A mesma prepotência
O mesmo poder fugaz.
Escravos, servos, obreiros os serviram
Outros e outros
Como se fossem sempre os mesmos.
 
E tu, que tinhas tu para sobreviver
E venceres todos os poderes?
Apenas as tuas visões
O teu dom de ver mais além.
Belas havia outras, tantas que se lhe perdeu a conta
E a memória e o lugar onde deixaram de ser.
Mas tu não eras só uma forma corpórea da beleza terrena
Tu vias o que eles, os poderosos, nunca puderam ver.
Tu cantavas os teus sonhos, calavas as palavras de luz
E eles estremeciam, subitamente fracos e ínfimos.
Os faraós erguiam pirâmides
Para se protegerem do teu olhar.
Os imperadores vorazes alargavam mais e mais os seus impérios
Para que nem a tua sombra pudesse ser livre.
Os rajás amestravam tigres colossais
Para te perseguirem e devorarem nas florestas.
Os califas decapitavam escravos e poetas
Até enlouquecerem e fugirem com horror
Dos seus íntimos espelhos.
Depois de muitas noites de sangue
Despertavam sobressaltados
Amarrotavam o cetim contra o peito
E num rasgo de incontida benevolência
Mandavam libertar os escravos e as odaliscas.
O destino exilava-se da vida
Repousava uma das suas breves eternidades
Sobre as águas de um lago muito azul e límpido
Que os eunucos bebiam incessantemente
Como se fosse o elixir de uma vida antiga
Que faz o tempo regredir até ao ventre da mãe
Até ao primeiro bocejo do universo tranquilo.
 
E tu lá vais no teu veleiro de alma plena
Velas de luz, ventos de luar
Sem temor, sem dor
Sem nostalgia nem profecias
Sem mapa final, sem geografia finita
Plena de certezas e paixão e caminhos abertos
Rumas à terra primeira
Nunca vencida, nunca perdida
Levas contigo milhões de almas sacrificadas
Tão belas como tu…

 São Ludovino, 4/12/1984 – 2 h manhã


Jews expelled from Iraq.

Jews expelled from Yemen. Jewish Yemenites go to Aden, Yemen, to find transportation to Israel.

Jewish women grinding at the mill, Palestine, Israel by Underwood and Underwood, 1900.


 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

* INICIAÇÃO & CRIAÇÃO

Standing with Ukraine I

*SALA DE DESENHO II

*SALA DE DESENHO I

*A CRIAÇÃO DO MUNDO

Standing With Israel - II

* O CREPÚSCULO DOS DEUSES

* CANDELABROS EM GUADALAJARA & outras inquitações

* SALA TEMÁTICA - Arte Vitoriana