*A CRIAÇÃO DO MUNDO

O UNIVERSO DO APRENDIZ (o site original)

       
© Miles Aldridge, Like a Painting, 2005

ESTRADA  DE  SANTIAGO

**************************

O Livro

 Abre-se o livro e o livro está em branco.

Segue-se o primeiro rasto da primeira estrela.
Supõe-se um diálogo,
pois é de diálogo que é feita a noite,
a escrita, a límpida invenção.
É sempre um longo, infinito diálogo, a escrita.
Há sempre longas conversas no convés mais longínquo de cada ser.

O Poema 

Há dias em que faz sentido chamar-lhe poesia

e nem há sequer outro nome que nos venha à mente.
De uma só palavra surge o poema.
A palavra que, mesmo só, se multiplica
pelas abóbadas do céu, da noite, da alma,
infinita constelação
reflectida, sublimemente, na fronte do velho aprendiz,
indício do esquivo olhar dos deuses inverosímeis
que moram em cada página branca.

 A Palavra

A uma só palavra

entregamos toda a nossa dedicação,
dias a fio.
Por uma só palavra,
escalamos montanhas
que nenhuma recompensa palpável
poderia justificar.
Com uma só palavra
descobrimos mistérios de que não saberíamos abdicar.
Numa só palavra
encontramos faces do universo por revelar.

 Todos os deuses são obra de poetas.

Todos os deuses veneram as palavras.
Sabem que delas e do poeta depende a sua existência
e a sua imortalidade.
Que belos fazedores de deuses são os poetas!
Mas que cansados que estão os deuses!
Que cansaço, o divino cansaço, de lhes vestir a pele,
de ser por eles,
de viver por eles,
de criar por eles.
Que cansados que estão os deuses-poetas,
os deuses-poesia!

A Espera

 Relemos devotamente

a história da nossa última criação.
Perguntamo-nos:
se tudo já foi dito,
por que me parece tudo isto novo e único?
Perguntamo-nos se Godot estará realmente só.
Perguntamo-nos
por que o encontramos tão amiúde
à mesa da ceia,
nas filosofias mais positivistas
ou nas páginas que repudiámos
por nos parecerem demasiado banais
ou demasiado herméticas.
Perguntamo-nos ainda:
serei sincero,
absolutamente sincero,
quando digo
“Não, não estou à espera de Godot!
Só as ausências são realmente inspiradoras.”
Geralmente, satisfazemo-nos com o “sim”
E prosseguimos convictamente a nossa busca
com os únicos instrumentos que possuímos:
a dúvida, a interrogação e uma fé imensa
no infinito poder da palavra.
Estará Godot cansado?
Esperará Godot por nós?
Estará Godot cansado de esperar por nós?
Amará Godot todos da mesma maneira?
Comerei amanhã morangos do meu quintal?
Será Godot mais do que um vermelho morango do meu quintal?

 A Vontade

Quero continuar a imaginar o cérebro perfeito,

a resposta exacta da palavra exacta
à dúvida colossal ou ao ínfimo desejo.
Quero continuar a invenção.
Quero continuar a criar.
Quero duvidar
quando preciso de duvidar.
Quero crer
quando preciso de acreditar.
Quero encontrar
quando preciso de procurar.
Quero responder
Quando preciso de perguntar.
Quero supor que a perfeição existe,
por múltiplas e infinitas que sejam
as suas formas e as suas manifestações.
É esta suposição a bússola dos meus dias,
dos meus rumos, das minhas palavras.

 A Vida

No universo todos os seres são íntimos estranhos

para os outros seres.
O que nos separa também nos une
― cada palmo ou ano luz é o prolongamento de uma vontade
que quer chegar aqui ―.
Por isso, as probabilidades de sermos felizes
são infinitas e relativas.
Em cada ponto do universo há alguém
que procura,
que espera por alguém.
Alguns estão tão distantes ou tão próximos
que se esquecem
de perguntar:
És tu?
Estás aí?
Só o acaso ou a vida os poderá fazer encontrar.

 A História Interminável 

Quantos dos seres que habitam o planeta

desconhecem o significado da palavra primordial:
VIDA?
Uns porque não podem viver, por vontade prepotente ou desumana lei,
outros porque não sabem (deixar) viver.
Metade destes últimos
toma a vida por coisa dada e completa
a que nada devemos acrescentar.
Seguem os trilhos mil vezes trilhados, matreiros ou honestos,
nada mais fazem do que esperar infindavelmente
que a trama ou a armadilha lhes sirva como oferenda
o feliz desenlace.
A outra metade,
toma a vida por coisa alheia e gratuita ou exclusivamente sua.
Destes últimos,
metade governa o mundo
— com vontade prepotente e desumana lei —
e os que lhes sobrevivem
— a outra metade —
ou morrem vivos
para que o mundo sobreviva
sem vida;
ou vivem agrilhoados em cavernas sempre idênticas,
geração após geração.
Completam-se mutuamente,
assustadoramente,
absurdamente,
como a morte completa a única vida possível
daqueles que não chegaram a viver;
como a escuridão prolonga o dia
de quem nunca viu o sol raiar.
Os que governam o mundo fundaram a Prisão dos Viventes
e orgulham-se dela.
Para entrar, basta pagar a quota de suor, sangue e alma
(condição obrigatória de quem não vive mas sobrevive),
entregar a alma ao Sumo Cicerone,
e trocar a Vontade pela Escravidão.
Os dissidentes são colocados ao serviço da Rainha de Copas.
Se tentarem fugir,
entrarão para as estatísticas
como criaturas imaginárias
ou traidores inadaptados
sem remissão possível.
Os outros (os que pagaram a quota) nada fundaram.
Afundam-se nos pântanos onde nasceram.
Deambulam pelas margens do mundo,
alienados, bizarros, desaparecidos
no cumprimento da vida.
A estes conhece-os o poeta, um por um,
Acredita que os poderá salvar
com a sua invencível utopia.
Dos outros não suporta sequer a sombra,
não suporta dilacerar as palavras
obrigando-as a dizer
o que na vida autêntica
não deveria sequer caber.
Exausto, combate-os com uma raiva nua, triste e dorida,
com palavras esfarrapadas, exangues,
não pára, não pode nunca parar
— as palavras e a verdade
 não podem cair nunca no esquecimento —
rasga nesgas de céu nas paredes do cativeiro
e grita uma alvorada que não raia,
mas persiste nas entranhas da noite.
Do lado de fora, sempre do lado de fora,
os senhores do mundo persistem,
constroem grades, temperam o aço,
alinham cifrões de armas em riste
prontos para o fuzilamento.
De olhos gigantescos e vermelhos
vendam janelas com fitas de negro cetim
e sentam-se à entrada contemplando o tétrico festim.
Tapam os desmesurados ouvidos com as mãos alvas e macias
e nada fazem porque nada sabem fazer,
embora tudo possam fazer,
tudo é feito para eles
tudo se esvai por entre os lânguidos dedos de polvo sombrio.
Deitam as cabeças de hidra nas suas almofadas de plumas negras
E, mesmo nos sonhos, repetem incessantemente: não, não, não…   
jamais escutam as sinfonias do tempo, que pensam ludibriar;
jamais acordam atrás da máscara cega,
que não param de polir e cravejar com belos olhos de diamante;
jamais aceitam a irrevogável diferença, de terem alma os prisioneiros
onde eles só têm lanças negras e afiadas;  
jamais reconhecem a intrínseca supremacia do espírito
dos que entregam o corpo à crucificação.
E, contudo, ó espanto dos espantos!
Ninguém os convence de que não são eles os imprescindíveis,
não são eles o corpo
que mantém aceso o espírito da VIDA.

Existem ainda aqueles seres

que estão vivos por natureza,
que são a vida na sua plena consumação:
são as pedras, as plantas, os animais,
as águas, os ventos, as estrelas, a luz, o fogo.
Das suas buscas de felicidade não há notícia.
Cada ser tem os seus caminhos
para chegar ao cerne da vida,
para chegar ao centro de si
onde mora o primeiro e último mistério.

 A Trama 

Aquele que teceu uma só malha da teia

nela há-de cair.
Aquele que apenas teceu dádivas e utopias
com o linho dos dias
pode ainda ser livre,
pode ainda entrar no diálogo
pode olhar e ver a transparência,
Pode ouvir e escutar o coração de todos os seres.
Esse vive em demanda e encontra.
Esse ama o espírito e a matéria
como uma sublime unidade.
Esse não desdenha a intuição e as miragens.
Esse descobrirá o lugar do encantamento.
Esse abrirá o livro em branco
e saberá ler a sua brancura.

 Epílogo

Sobre os meus poemas

não há nada a dizer.
 Tudo o que haveria a dizer
está lá dito.
E o que não está
é símbolo que quer permanecer símbolo,
é brancura que se abre ao espírito
daqueles para quem guardar o enigma
é tão imprescindível como buscar a revelação...

 Suy / São Ludovino (Conceição Ludovino), 4/12/1993 (2h manhã)


© Miles Aldridge, Like a Painting, 2005

© Miles Aldridge, Like a Painting, 2005


Cântico da Sede

IV

 Sabemos bem demais o que sentimos,

Sabemos, todos sem excepção,
Que somos seres eleitos.
Somos senhores de um só reino,
Imperadores de uma só vontade.
Sabemos, sem equívocos,
O que queremos em cada momento.
Sabemos quem amamos e quem odiamos,
 Sabemos que somos heróis e cobardes.
Somos, todos sem excepção,
Exímios fingidores.
Sabemos inventar deixas
 Acutilantes, irresistíveis de veludo,
Compor diálogos como sinfonias
Com contrapontos e fugas exactas,
Solilóquios de amor e silêncio.
Sabemos pedir, exigir, implorar,
Dar, entregar.
Criamos mundos infinitos
Que não sabemos decifrar nem domar.
Damos a vida, tiramos a vida
Com toda a perícia,
Sem uma única gota de sangue.
Rasgamos o peito amado 
Só para conhecer um novo vértice do prisma do amor.  
Entregamos tudo o que julgamos ser   
Para ver o que seríamos se fôssemos o outro ou nada.
Num ou noutro instante,
Todos somos os seres mais felizes do universo.
Só não sabemos amar como deuses
E morrer como as plantas... 

 

Suy São Ludovino (Conceição Ludovino), 12/6/1993

 

Constance Marie Charpentier, 1767-1849, Melancholy, 1801.

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