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O Livro
Abre-se
o livro e o livro está em branco.
Segue-se
o primeiro rasto da primeira estrela.
Supõe-se
um diálogo,
pois
é de diálogo que é feita a noite,
a
escrita, a límpida invenção.
É
sempre um longo, infinito diálogo, a escrita.
Há
sempre longas conversas no convés mais longínquo de cada ser.
O Poema
Há
dias em que faz sentido chamar-lhe poesia
e
nem há sequer outro nome que nos venha à mente.
De
uma só palavra surge o poema.
A
palavra que, mesmo só, se multiplica
pelas
abóbadas do céu, da noite, da alma,
infinita
constelação
reflectida,
sublimemente, na fronte do velho aprendiz,
indício
do esquivo olhar dos deuses inverosímeis
que
moram em cada página branca.
A Palavra
A
uma só palavra
entregamos
toda a nossa dedicação,
dias
a fio.
Por
uma só palavra,
escalamos
montanhas
que
nenhuma recompensa palpável
poderia
justificar.
Com
uma só palavra
descobrimos
mistérios de que não saberíamos abdicar.
Numa
só palavra
encontramos
faces do universo por revelar.
Todos
os deuses são obra de poetas.
Todos
os deuses veneram as palavras.
Sabem
que delas e do poeta depende a sua existência
e
a sua imortalidade.
Que
belos fazedores de deuses são os poetas!
Mas
que cansados que estão os deuses!
Que
cansaço, o divino cansaço, de lhes vestir a pele,
de
ser por eles,
de
viver por eles,
de
criar por eles.
Que
cansados que estão os deuses-poetas,
os
deuses-poesia!
A Espera
Relemos
devotamente
a
história da nossa última criação.
Perguntamo-nos:
se
tudo já foi dito,
por
que me parece tudo isto novo e único?
Perguntamo-nos
se Godot estará realmente só.
Perguntamo-nos
por
que o encontramos tão amiúde
à
mesa da ceia,
nas
filosofias mais positivistas
ou
nas páginas que repudiámos
por
nos parecerem demasiado banais
ou
demasiado herméticas.
Perguntamo-nos
ainda:
serei
sincero,
absolutamente
sincero,
quando
digo
“Não,
não estou à espera de Godot!
Só
as ausências são realmente inspiradoras.”
Geralmente,
satisfazemo-nos com o “sim”
E
prosseguimos convictamente a nossa busca
com
os únicos instrumentos que possuímos:
a
dúvida, a interrogação e uma fé imensa
no
infinito poder da palavra.
Estará
Godot cansado?
Esperará
Godot por nós?
Estará
Godot cansado de esperar por nós?
Amará
Godot todos da mesma maneira?
Comerei
amanhã morangos do meu quintal?
Será
Godot mais do que um vermelho morango do meu quintal?
A Vontade
Quero continuar a imaginar o cérebro perfeito,
a
resposta exacta da palavra exacta
à
dúvida colossal ou ao ínfimo desejo.
Quero
continuar a invenção.
Quero
continuar a criar.
Quero
duvidar
quando
preciso de duvidar.
Quero
crer
quando
preciso de acreditar.
Quero
encontrar
quando
preciso de procurar.
Quero
responder
Quando
preciso de perguntar.
Quero
supor que a perfeição existe,
por
múltiplas e infinitas que sejam
as
suas formas e as suas manifestações.
É
esta suposição a bússola dos meus dias,
dos
meus rumos, das minhas palavras.
A Vida
No
universo todos os seres são íntimos estranhos
para
os outros seres.
O
que nos separa também nos une
―
cada palmo ou ano luz é o prolongamento de uma vontade
que
quer chegar aqui ―.
Por
isso, as probabilidades de sermos felizes
são
infinitas e relativas.
Em
cada ponto do universo há alguém
que
procura,
que
espera por alguém.
Alguns
estão tão distantes ou tão próximos
que
se esquecem
de
perguntar:
És
tu?
Estás
aí?
Só
o acaso ou a vida os poderá fazer encontrar.
A História Interminável
Quantos
dos seres que habitam o planeta
desconhecem
o significado da palavra primordial:
VIDA?
Uns
porque não podem viver, por vontade prepotente ou desumana lei,
outros
porque não sabem (deixar) viver.
Metade
destes últimos
toma
a vida por coisa dada e completa
a
que nada devemos acrescentar.
Seguem
os trilhos mil vezes trilhados, matreiros ou honestos,
nada
mais fazem do que esperar infindavelmente
que
a trama ou a armadilha lhes sirva como oferenda
o
feliz desenlace.
A
outra metade,
toma
a vida por coisa alheia e gratuita ou exclusivamente sua.
Destes
últimos,
metade
governa o mundo
—
com vontade prepotente e desumana lei —
e
os que lhes sobrevivem
—
a outra metade —
ou
morrem vivos
para
que o mundo sobreviva
sem
vida;
ou
vivem agrilhoados em cavernas sempre idênticas,
geração
após geração.
Completam-se
mutuamente,
assustadoramente,
absurdamente,
como
a morte completa a única vida possível
daqueles
que não chegaram a viver;
como
a escuridão prolonga o dia
de
quem nunca viu o sol raiar.
Os
que governam o mundo fundaram a Prisão dos Viventes
e
orgulham-se dela.
Para
entrar, basta pagar a quota de suor, sangue e alma
(condição
obrigatória de quem não vive mas sobrevive),
entregar
a alma ao Sumo Cicerone,
e
trocar a Vontade pela Escravidão.
Os
dissidentes são colocados ao serviço da Rainha de Copas.
Se
tentarem fugir,
entrarão
para as estatísticas
como
criaturas imaginárias
ou
traidores inadaptados
sem
remissão possível.
Os
outros (os que pagaram a quota) nada fundaram.
Afundam-se
nos pântanos onde nasceram.
Deambulam
pelas margens do mundo,
alienados,
bizarros, desaparecidos
no
cumprimento da vida.
A
estes conhece-os o poeta, um por um,
Acredita
que os poderá salvar
com
a sua invencível utopia.
Dos
outros não suporta sequer a sombra,
não
suporta dilacerar as palavras
obrigando-as
a dizer
o
que na vida autêntica
não
deveria sequer caber.
Exausto,
combate-os com uma raiva nua, triste e dorida,
com
palavras esfarrapadas, exangues,
não
pára, não pode nunca parar
—
as palavras e a verdade
não
podem cair nunca no esquecimento —
rasga
nesgas de céu nas paredes do cativeiro
e
grita uma alvorada que não raia,
mas
persiste nas entranhas da noite.
Do
lado de fora, sempre do lado de fora,
os
senhores do mundo persistem,
constroem
grades, temperam o aço,
alinham
cifrões de armas em riste
prontos
para o fuzilamento.
De
olhos gigantescos e vermelhos
vendam
janelas com fitas de negro cetim
e
sentam-se à entrada contemplando o tétrico festim.
Tapam
os desmesurados ouvidos com as mãos alvas e macias
e
nada fazem porque nada sabem fazer,
embora
tudo possam fazer,
tudo
é feito para eles
tudo
se esvai por entre os lânguidos dedos de polvo sombrio.
Deitam
as cabeças de hidra nas suas almofadas de plumas negras
E,
mesmo nos sonhos, repetem incessantemente: não, não, não…
jamais
escutam as sinfonias do tempo, que pensam ludibriar;
jamais
acordam atrás da máscara cega,
que
não param de polir e cravejar com belos olhos de diamante;
jamais
aceitam a irrevogável diferença, de terem alma os prisioneiros
onde
eles só têm lanças negras e afiadas;
jamais
reconhecem a intrínseca supremacia do espírito
dos
que entregam o corpo à crucificação.
E,
contudo, ó espanto dos espantos!
Ninguém
os convence de que não são eles os imprescindíveis,
não
são eles o corpo
que
mantém aceso o espírito da VIDA.
Existem
ainda aqueles seres
que
estão vivos por natureza,
que
são a vida na sua plena consumação:
são
as pedras, as plantas, os animais,
as
águas, os ventos, as estrelas, a luz, o fogo.
Das
suas buscas de felicidade não há notícia.
Cada
ser tem os seus caminhos
para
chegar ao cerne da vida,
para
chegar ao centro de si
onde
mora o primeiro e último mistério.
A Trama
Aquele
que teceu uma só malha da teia
nela
há-de cair.
Aquele
que apenas teceu dádivas e utopias
com
o linho dos dias
pode
ainda ser livre,
pode
ainda entrar no diálogo
pode
olhar e ver a transparência,
Pode
ouvir e escutar o coração de todos os seres.
Esse
vive em demanda e encontra.
Esse
ama o espírito e a matéria
como
uma sublime unidade.
Esse
não desdenha a intuição e as miragens.
Esse
descobrirá o lugar do encantamento.
Esse
abrirá o livro em branco
e
saberá ler a sua brancura.
Epílogo
Sobre
os meus poemas
não
há nada a dizer.
Tudo
o que haveria a dizer
está
lá dito.
E
o que não está
é
símbolo que quer permanecer símbolo,
é
brancura que se abre ao espírito
daqueles
para quem guardar o enigma
é
tão imprescindível como buscar a revelação...
Suy / São Ludovino (Conceição
Ludovino), 4/12/1993 (2h manhã)

© Miles
Aldridge, Like a Painting, 2005
© Miles Aldridge, Like a Painting, 2005
Cântico da Sede
IV
Sabemos
bem demais o que sentimos,
Sabemos,
todos sem excepção,
Que
somos seres eleitos.
Somos
senhores de um só reino,
Imperadores
de uma só vontade.
Sabemos,
sem equívocos,
O
que queremos em cada momento.
Sabemos
quem amamos e quem odiamos,
Sabemos
que somos heróis e cobardes.
Somos,
todos sem excepção,
Exímios
fingidores.
Sabemos
inventar deixas
Acutilantes,
irresistíveis de veludo,
Compor
diálogos como sinfonias
Com
contrapontos e fugas exactas,
Solilóquios
de amor e silêncio.
Sabemos
pedir, exigir, implorar,
Dar,
entregar.
Criamos
mundos infinitos
Que
não sabemos decifrar nem domar.
Damos
a vida, tiramos a vida
Com
toda a perícia,
Sem
uma única gota de sangue.
Rasgamos
o peito amado
Só
para conhecer um novo vértice do prisma do amor.
Entregamos
tudo o que julgamos ser
Para
ver o que seríamos se fôssemos o outro ou nada.
Num
ou noutro instante,
Todos
somos os seres mais felizes do universo.
Só
não sabemos amar como deuses
E
morrer como as plantas...
Suy
São Ludovino (Conceição Ludovino), 12/6/1993
Constance Marie Charpentier, 1767-1849,
Melancholy, 1801.
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