* CANDELABROS EM GUADALAJARA & outras inquitações

O UNIVERSO DO APRENDIZ (o site original)

 
© Roi James, Woman with Eastern Bluebird, 2005.

CANDELABROS EM GUADALAJARA

Parte I

Observemos as aves sobre os campos de feno.

Não pousam nas pedras vermelhas e negras,
pairam, glissam, serpenteiam pelo ar.
Não se sabe se são sempre as mesmas ou outras.
Olho-as como se fossem as últimas
e talvez sejam...
Entrego-lhes a espera
porque têm um ar tão paciente
e não partem nunca.

Hoje, por exemplo,

é um dia vulgar.
A vida corre pelos seus rios
calmamente
ou então é indiferentemente
e é por isso que as nossas confissões dormem
serenamente
sob obeliscos negros de ónix
e nos sentimos felizes por nada revelarem os nossos rostos.
Deixamos descair o chapéu sobre os olhos
e trauteamos enigmas ao azul límpido deste instante.
Ouvem-se menos ruídos nas encruzilhadas
e as luzes não parecem todas faróis gigantes,
candelabros intensamente fluorescentes
ou outras fontes de ludíbrio.
Uma pessoa deita-se de costas na cama               
E não fica à espera de nada.
A filosofia pousa-nos nas pálpebras
ou sobre um jarro de flores
sob a forma de uma borboleta moribunda;
Damos-lhe um sopro e volta a voar
e quando erguemos um pouco a cabeça
e a vemos afastar-se pela janela,
sentimo-nos tranquilos com a sua inextinguível fragilidade.

É assim que acontece muitas vezes o imprevisto,

um subtil longo dedo do destino
e outras experiências e descobertas…
Quantos deuses se ergueram das neblinas
e fantasmas se incrustaram nos cérebros
e asas foram tecidas para a borboleta que há-de vir
em momentos como este…

© Ferdinando Scianna, 1987.

A ociosidade é um bem essencial,

contudo poucos têm o talento que ela exige:
um espírito incansável e um grande amor ao trabalho.
A mãe dos dinossauros e dos cisnes de cristal
exige grandes provas de fidelidade aos seus filhos
e amantes amados.
Há momentos em que tudo parece possível
e nada convence as galáxias perdidas nas teias desta humanidade finita
da quase inutilidade
da sua beleza e complexidade.
Eu, por mim, não me convenço de nada
senão da primeira e última vez de cada instante;
faço apenas as minhas tranças de estrelas,
convictamente como sempre.

© Adam Clark Vroman, A Hopi Doorway, Sichumovi Pueblo, 1902.

A borboleta voltou;

está pousada no parapeito.
Olho lá para fora;
todas as aves pousaram nas pedras vermelhas e negras,
excepto uma... mas é azul e branca
e há instantes em que os meus olhos a fundem com o horizonte.


Butterflies by ©Unknown via Traveling with the Ghost.

Desta janela avista-se demasiado,

avista-se o mundo inteiro
(e nem sempre tenho a certeza de que isso seja bom;
às vezes olhar por uma janela é pensar o mundo inteiro de uma só vez):
Demasiados cilindros aplanando as montanhas
Demasiados interiores de casa-ecrã
Demasiado carnaval
Demasiadas lojas de fantasias
Demasiados desfiles comemorando a nostalgia
Demasiadas gotas de sangue nas lâminas dos leques de marfim
Demasiados príncipes e princesas de línguas bífidas
Demasiados duelos entre gnomos e gigantes
Entre máscaras e gotas de água límpida
Entre segundos de êxtase e séculos de espera
Entre um vestido de cetim e um vestido de crepe
Entre os templos caídos e os templos erguidos
Entre o fogo e a Fénix
Entre a Fénix e os caçadores de fénixes
Entre os verdes campos e o extenso teatro
Entre o deserto e a flor
Demasiadas alucinações sem retorno
Demasiados labirintos que desembocam em fábricas e casinos de terapia
Demasiados monstros de muitas cabeças e um vazio coração
Demasiadas multidões domesticadas, hirtas, exangues
Demasiados adeptos do modelo único de felicidade
Demasiadas imitações do amor
Demasiada angústia que os corpos não podem enganar
Demasiada dor que os corpos não podem extinguir
(mas os olhos escondem como pedras preciosas)
Demasiada lucidez
Demasiadas faces da transparência
Demasiadas suspeitas…
E, no entanto, a laje tépida da eira onde as aves pousaram agora,
— a mesma onde me deitei em noites de azul profundo
para contar um milhão de estrelas
e descobrir feliz a minha insignificância,
pela milionésima vez —
continua tranquila e tépida, qual leito comum da humanidade.

Talvez nunca devesse ter construído a minha janela

numa colina tão alta,
donde os meus olhos são atraídos para todos os abismos,
por onde a minha alma esvoaça, por vezes, sem aviso
e me deixa sozinha com a minha finitude humana.
Contudo, não é apenas medo ou raiva que sinto
quando ao mesmo tempo avisto
soldados caídos à sombra do chefe guerreiro
e os paraísos perdidos reerguerem-se nas praias
nas noites em que o luar fica a sós com o mar
— quem sabe, talvez continuem intactos
nalgum livro sagrado
nalguma gruta marinha
ou gravados em algum tronco de árvore colossal e antiquíssima
que os homens ainda não encontraram.
Isto que vejo, isto que sinto,
isto que sou quando vejo e sinto
é cada ser e toda a humanidade de uma só vez.
É excessivo olhar por esta janela.
É impossível fechá-la.
É impossível negar o mundo.
Só é possível fechar os olhos,
mas o microscópio telescópico continua lá
(invisível, debruça-se do parapeito da janela)
com as lentes alojadas no fundo das minhas íris.

© Lukas Kandl

Agora, é noite

as aves dormem sob as estrelas
e as vozes de todos os tempos emergem mais nítidas
da brisa que agita a folhagem
e esmorece na maciez reconfortante do feno.
Será mesmo noite?
As cores do céu trazem em si os dias de outros tempos,
de outros seres que viveram esta mesma noite
ao longo de infinitos dias…  

 

Suy / São Ludovino, 11/7/1986

© Roger M. Richards, An old man sits at a destroyed bus stop in a city 
where buses no longer run, Sarajevo, Bosnia and Herzegovina, February 1993. 


Circle of Life by ©Selina De Maeyer – Model: Pauline Grossen - Deviantart.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

* INICIAÇÃO & CRIAÇÃO

Standing with Ukraine I

Standing With Israel - I

*SALA DE DESENHO II

* SALA TEMÁTICA - Caricatura, cartoon, ilustração & C.ª

Standing With Israel - II

*A CRIAÇÃO DO MUNDO

Standing With Ukraine III

*SALA DE DESENHO I

* SALA TEMÁTICA - Arte Vitoriana